VAMOS CONSTRUIR A PÁTRIA

 
GAUDÊNCIO TORQUATO
 
 
Os Países são expressões geográficas e os Estados são formas de equilíbrio político. A Pátria, porém, transcende esse conceito: é sin­cronismo de espíritos e corações, aspiração à grandeza, comunhão de esperanças, solidariedade sentimental de uma raça. Enquanto um País não é Pátria, seus habitantes não formam uma Nação. Este breve resumo, pinçado de um dos mais belos ensaios morais sobre a mediocridade, de autoria de José Ingenieros, deve servir como lição aos nossos governantes neste ano que chega ao fim. Construir a Pátria para se alcançar o estágio avançado de Nação se configura como o primeiro dever do homem público.
A ideia pode até parecer despropositada aos porta-vozes da politi­cagem e demagogos que fartam os apetites com a exploração do senti­mento cívico das populações. Mas a verdade é que, depois de 517 anos do Descobrimento, a Pátria brasileira é apenas arremedo de um bom conceito. Estamos longe daquela emulação coletiva que distingue na Mãe Pátria o anelo da dignidade. Basta observar a deficiência das es­truturas públicas. A crise entre os Poderes se intensifica. A sociedade toma distância oceânica da política. A descrença nas instituições se espraia vertiginosamente. Um poder sem moral se instala nos ambientes. As fontes éticas se esgotam. As investigações em curso mostram o poço profundo em que o Brasil foi jogado. As injustiças ganham corpo, escudadas no desleixo e na incúria de admi­nistrações, na irresponsabilidade de governantes, na desobediência às leis e no acesso ainda desigual dos cidadãos aos canais da Justiça.
Os traços da civilização brasileira carregam uma dose elevada de tintas da barbárie. O Brasil é um país moderno. Basta olhar ao redor os avanços da tecno­logia, a capacidade de produzir bens e serviços sofisticados, a revolução nas comunicações, os mais de 100 milhões de brasileiros conectados à Internet, o avanço da moda, a socialização da cultura, entre outros aspectos. Apesar de tudo isso, tem sido uma tarefa complexa, às vezes impossível, passar a borracha no país do analfabetismo funcional, dos assassinatos; da ladroagem que continua a assaltar os cofres públicos; do território onde a pobreza convive ao lado da riqueza; dos potenciais devastados por ambição; da desintegração de padrões de relacio­namento social e do solapamento de valores fundamentais, como o culto à família, o cumprimento do dever, o respeito às tradições e a defesa do bem comum.
Alguém poderá objetar: mas essa é a inversão moral que toma conta do mundo, ou o paradigma do “puro caos”, como assim designa Samuel P. Huntington, em seu livro O Choque das Civilizações, onde assinala a ruptu­ra da ordem, a anarquia crescente, a onda global de criminalidade, a debilitação geral da família e o declínio na solidariedade social.
A hipótese é razoável, mas o adendo é indispensável: o Brasil põe um molho peculiar no menu da entropia universal, com as mazelas do passado colonial, entre as quais a árvore do patrimonialismo, que continua a brotar galhos tortos, transformando a res publica em coisa privada. Essa é a razão da crise entre nós. A política passa a ser profissão, deixando de ser missão. Para corrigir o conceito, é necessário refundar a Re­pública corrompida. Quando uma República se corrompe – lembra Montesquieu –, não se pode remediar nenhum dos males que nascem, a não ser eliminando a corrupção e voltando aos princípios. Como combater a corrupção sem eliminar os corruptos? Vamos esperar que o Judiciário e o Ministério Público deem respostas satisfatórias. Não usando, porém, os recursos da espetacularização.
A assepsia deve ser geral. A começar pelos Poderes do Estado, cujas atitudes devem se guiar pelo cumprimento de suas funções constitucionais, evitando interpenetração de territórios.  É oportuno que cada Poder se esforce pela construção da Pátria. Não é hora de casuísmos, gastos per­dulários, renegociação de dívidas de Estados sem contrapartidas, cooptação ilícita de apoios e partidarização do Estado. Convém eliminar o empreguismo e o loteamento de setores. O corpo parlamentar há de aceitar a concepção de que mandato ganho nas urnas pertence ao povo, não pertencendo a ele. O representante é um fiduciário que de­fende interesses gerais, e não particulares, com deveres e direitos, entre os quais o ganho pelo trabalho. Urge cortar despesas, não gastar mais do que se arrecada.
Os quadros do Judiciário hão de lembrar que “os juízes devem ser mais reverendos que aclamados e mais circunspectos que auda­ciosos”, elegendo a integridade como virtude, como ressalta Francis Bacon. Se os Poderes cumprirem as obrigações que lhes são atinentes, o País caminhará sem atropelos. As leis precisam ser cumpridas. E as instituições devem ser respei­tadas. A cidadania há de ampliar seus espaços principalmente na base da pirâmide social. As sombras precisam dar lugar a luz. Transparência é a palavra-chave. A violência deve ser banida das ruas. Partidos e candidatos hão de vestir o manto da assepsia.  Que os horizontes de 2017 sejam mais límpidos. Mais éticos e menos espalhafatosos. Ouçamos discursos sérios. Vejamos administrações mais racionais. Menos escândalos. Menos sujeira nas sarjetas da política. Menos invencionice. Mais verdade. Sob essa teia de valores e princípios, podemos fazer com que a fé volte a brotar nos corações.  
 

Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato

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