A CONSCIÊNCIA SOBRE DIREITOS

GAUDÊNCIO TORQUATO
 
A pendenga entre advogados e juízes, abrigando divergências sobre a Operação Lava Jato, aqueles com sérias críticas ao que chamam de “espécie de inquisição” e estes defendendo o trabalho “imparcial e exemplar” do Judiciário, é um representativo episódio do debate que se arrasta no país sobre o campo dos Direitos. Quem tem razão? O que está no centro da discussão é a pertinência legal ou não de protagonistas na realização de suas tarefas, assim exposta: o juiz Sérgio Moro, de 1ª instância, exorbita funções ao assumir, praticamente sozinho, o largo repertório de investigações para apurar desvios de recursos no entorno da Petrobras e usar de modo excessivo o instrumento da delação premiada para abrir a torneira da corrupção? Ainda no âmbito do Judiciário, a Suprema Corte cumpre o estrito dever de interpretar a Constituição ou invade o território do Poder Legislativo, ao desfiar posições definidas no Regimento Interno das casas congressuais, como o ordenamento para o impeachment presidencial, a ponto de ser considerada pivô de tensões e acusada de judicializar a política?       
            As questões sobre direitos e deveres, vale lembrar, têm se multiplicado desde 1988, quando se promulgou a Constituição Cidadã, cuja designação mostra a pletora de situações envolvendo os mais diferentes aspectos da vida social. Ponderável parcela do acervo normativo, ao deixar de receber o devido regramento por meio de legislação infraconstitucional, bate frequentemente nas portas do Supremo Tribunal Federal, abrindo espaços para tensões, querelas e muita polêmica. A par dos vazios constitucionais, o país que reabriu as portas da redemocratização em 1986, continuou a conviver com práticas e costumes tradicionais, fato que tem agravado a crise política, cujas consequências ameaçam as próprias bases da governabilidade. Se adicionarmos a essa devastada paisagem as crateras cavadas pela engrenagem administrativa, sob a égide do presidencialismo de cooptação partidária, aportaremos no gigantesco arquipélago que administra o país, formado por uma ilha maior, onde se concentra o poder (União), ilhas menores e dependentes (Estados) e pequenos nacos de terra, extremamente carentes (Municípios). O arremedo final da malha administrativa é a relação contaminada entre a burocracia do Estado (nas três instâncias federativas), corpos da representação política e círculos de negócios, ensejando um conluio que descamba para um elevado Produto Nacional Bruto da Corrupção.
            As crateras abertas pela Constituição de 88 tinham um prazo para ser tampadas, por exemplo, o fim dos anos 90. Não o foram. Ao contrário, a política não fez mudanças substantivas ao longo dos últimos 30 anos, continuando a operar à base de fisiologismo e cultivo de currais eleitorais; a economia até encontrou saídas para se fortalecer (Plano Real), mas, sob o mando do PT, acabou fenecendo nas ondas de uma “matriz econômica” ancorada no crédito fácil e massificação do consumo. Classes e grupos sociais, depois de breve visita ao patamar do meio (classe C emergente), descem agora ao fundo do poço das grandes carências. Já são perto de 5 milhões os reingressos à base da pirâmide. E assim, na confluência de crises – política, econômica, social, ética e de gestão -, a sociedade encontra uma resposta plausível para resgatar sua esperança: a justiça. O Judiciário passa a ser visto como o espaço sagrado e intocável, cuja luz poderá voltar a iluminar veredas cheias de entulho. A prisão de empresários e políticos teria, sob esse prisma, o condão de reacender a fé.
            Nesse ambiente borrascoso enxerga-se a querela entre advogados e juízes ou entre o STF e componentes do Legislativo. Para a sociedade, Sérgio Moro transforma-se em ícone da moralidade. O que faz – mesmo com excessos – passa a se justificar plenamente por grupos sociais principalmente das margens, que aplaudem calorosamente a aplicação da justiça, neste caso, a prisão de corruptos e corruptores. Até que enfim, pensam, o Brasil nivela todos os seus cidadãos pela régua da lei. Da mesma forma, a judicialização da política, levada a efeito pelo STF, também tende a ganhar aprovação social, mesmo sob o risco de danos institucionais provocados por interferência legislativa da Corte maior no espaço parlamentar. Poucos se dão conta de que os ministros do STF, ao adentrarem o terreno do regimento interno das Casas Congressuais, estariam repartindo com os parlamentares as funções legislativas. O que se comenta é o fato de que o Judiciário está julgando as situações que batem em seu foro.  
            O fato é que a esfera política vive um dos piores momentos de sua imagem. Mesmo com um bom desempenho – foram densas e múltiplas as pautas votadas em 2015 -, o corpo parlamentar, como um tudo, acaba afogado na lama dos escândalos de corrupção, a par das suspeitas que recaem sobre seus dirigentes. Assim, os atores políticos se distanciam do povo, que os vê como extensões do mal. Cria-se um imenso vazio no meio da sociedade, que passa a ser ocupado por uma miríade de organizações (entidades, movimentos, núcleos, associações, federações, sindicatos). Estas, sim, passam a representar os grupamentos sociais.
            São essas organizações que ensaiam o hino dos Direitos. Cada nicho quer ver direitos garantidos. Essa consciência é a boa nova. Por aqui, a cidadania sempre foi uma abstração. Ao longo de nossa história, fomos identificados com a estadania, como designa o historiador José Murilo de Carvalho a cultura do cidadão acolhido pelos braços do Estado. Ao contrário do desenvolvimento de outros povos, como o inglês. Na Inglaterra, o sociólogo Thomas Marshall mostra que vieram,  primeiro, no século XIX, os direitos civis, depois os direitos políticos e, por fim, já no século XIX, os direitos sociais.  Por aqui, os direitos sociais (na era Vargas) tiveram prevalência sobre as liberdades civis. Em suma, no meio do maior lodaçal da vida contemporânea, vemos correr a seiva da consciência cidadã.      

 
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato

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