PALMAS PARA A DEMOCRACIA


 
GAUDÊNCIO TORQUATO
 
            Abro minha primeira expressão, neste Novo Ano, com uma exaltação às qualidades do ser humano. E, sobretudo, com o reconhecimento de que o futuro do nosso país será moldado por um cidadão mais racional, ético e consciente de seus direitos e deveres. Valho-me de Aristóteles, que ensinava ser o homem, em estado de perfeição, o melhor dos animais. Quando, porém, afastado da lei e da justiça, é ele o mais selvagem e impiedoso de todos, pois, destituído de qualidades morais, usa a inteligência e o talento como armas para praticar o mal. É possível vislumbrar no pensamento do filósofo grego a inspiração que emoldura a sábia observação do hoje advogado e ex-presidente do STF, Carlos Ayres Britto, por ocasião da histórica sessão da Suprema Corte que julgou o núcleo político da Ação Penal 470, conhecida como Mensalão, pelo crime de formação de quadrilha: “Deus no céu e a política na terra. Por quê? Porque a política é o meio pelo qual a Sociedade constrói e reconstrói o Estado. A política é o instrumento de concretização dos anseios do povo. É, acima de tudo, a forma pela qual se pode buscar o bem-estar coletivo, a manutenção da ordem e a concepção do progresso”.
            No fundo, a peroração procura elevar ao mais alto patamar da grandeza as virtudes do homem e a noção de direitos que Alexis de Tocqueville distinguia como imanentes ao mundo político. Assim pregava: “Não existem grandes homens sem virtude; sem respeito aos direitos, não existem grandes povos e nem mesmo sociedade”. Pelo que se assiste hoje, o longo processo que tenta passar o Brasil a limpo, cujo desfecho ainda está distante(a conclusão da Operação Lava Jato vai levar um bom tempo), merece atenção especial não apenas pelo fato de trazer à tona questões centrais sobre o dna dos nossos costumes políticos, mas pelo feito de resgatar conceitos clássicos – Estado, política, ética, direitos, cidadania, liberdade, democracia. No seio de uma cultura eivada de mazelas históricas, treinada na arte de transformar curvas em retas, impermeável ao temor do castigo por saberem seus artífices que, flagrados em práticas ilícitas, mais cedo ou mais tarde, escapariam das teias que os envolvem, a decisão do Judiciário de punir altas figuras – tanto da esfera política quanto do universo empresarial – se eleva ao mais alto grau das decisões históricas da contemporaneidade brasileira. Punir poderosos? Inacreditável, mesmo que se projete na mente social a imagem de uma Corte de juízes probos, independentes, autônomos, iluminados pela coleção de valores alinhavados pelo filósofo Francis Bacon: “Os juízes devem ser mais instruídos que sutis, mais reverendos que aclamados, mais circunspetos do que audaciosos”.
            Se alguém tinha dúvidas sobre o fator que efetivamente transforma a história das sociedades, recebe concisa resposta na expressão das Cortes: a igualdade dos homens. Todos são iguais perante a lei. Por isso, a lição que o Brasil está aprendendo certamente haverá de gerar frutos sadios para aprimorar nossa democracia. A ciência política elege o igualitarismo entre os homens como essência dos países democráticos. O ideal da liberdade une-se ao pilar da igualdade, condição que, por sua vez, exige práticas políticas irrigadas nas águas da moral, da ética e da dignidade. O respeito e o cumprimento do nosso aparato legal-jurídico propicia a impressão de que o governo da justiça estende os braços a todos, sem distinção de classe, raça ou categoria. Viceja o sentimento de que as nossas instituições, mercê das tensões que as caracterizam, cuidam da vida social, da norma e do Direito. É até possível que a semente plantada pela Justiça demore a frutificar. Mas o traçado da política pela régua dos nossos velhos atores não será o mesmo. Está mudando de direção. Representantes do povo, agora mais atentos ao que pode e ao que não pode ser feito, se esforçarão para atenuar os vícios a que se amoldaram e cultivam. Não se muda uma cultura política da noite para o dia. Mas a longa trajetória da ética começa, bem o sabemos, com dois ou três passos morais. A soma de passos conjugados, no centro e nas margens da sociedade, conduzirá os conjuntos políticos a exercitarem comportamentos regrados por bons costumes e ações referendadas pelo império da lei. Como pano de fundo, a consciência de que a instituição que administra a Justiça dá mostras que vai funcionar sem amarras. Autônoma, independente. Palmas para a democracia.
            As vastas e nem sempre bem cuidadas roças da administração pública, nas três esferas da administração, doravante deverão se iluminar por refletores do Ministério Público e da Polícia Federal, os quais, por sua vez, acionarão os canais da Justiça, da primeira à última instância. A Lei da Ficha Limpa, a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Ordem Ética, o Compromisso da Representação Política, os Controles do Estado funcionarão como aríete contra a corrupção. Diminuir o custo Brasil da incúria torna-se vital para avanços na gestão pública. Os prefeitos a serem eleitos em outubro deste ano se obrigam a realizar projetos inovadores e prioritários, contribuindo para consolidar a racionalidade das gestões.
            Veremos uma nova política florescer nos espaços de 5.568 prefeituras sob a esperança de um pulsar coletivo, pleno de exclamações que resgatam o orgulho e a autoestima. Temos de acreditar que a chama cívica voltará a iluminar o canto esquerdo do nosso peito. Temos de acreditar no poder espiritual do homo brasiliensis. Não tardará o momento de declamarmos a expressão de José Ingenieros, o grande escitor argentino, em seu magistral O Homem Medíocre: “Pátria é comunhão de esperanças, de sonhos comuns e a busca de um ideal; é a solidariedade sentimental de um povo e não a confabulação de politiqueiros que medram à sua sombra”.
 
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato

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