Falta de solidariedade

por *José Renato Nalini

A judicialização da saúde pode ser encarada sob diversas óticas. Como pressuposto, penso que não é necessário insistir na constatação desse fenômeno. Ao converter a saúde em direito universal, a Constituição da República abriu espaço para que todo e qualquer pleito chegue ao Judiciário e com escassa chance de merecer indeferimento. O resultado é a inviabilidade de qualquer projeto sério, no âmbito municipal, diante do vulto dos interesses atendidos.

Há quem sustente a higidez do sistema. Afinal, o acesso à Justiça foi assegurado e todos aqueles que tiverem necessidade terão um juiz à disposição para ordenar que o município propicie internação, dentro ou fora do Brasil, medicamento ainda em teste ou não aprovado pelas autoridades competentes, próteses, tratamentos e tudo o mais o que se oferecer nesse mercado florescente que é o da saúde integral.

Mas a conta não está fechando e o município é o maior prejudicado. É muito difícil cobrar as obrigações da União e um pouco menos exigi-las do Estado-Membro. Mas é muito fácil citar o Prefeito para que atenda a toda e qualquer pretensão.

O Estado brasileiro encontra-se em situação falimentar. São pedaladas e artifícios que já não encobrem o quadro trágico: os direitos prodigalizados pela Constituição e a multiplicidade de agentes formados sob a única visão de todos os problemas – entrar no Judiciário – tornam inadministrável a Prefeitura.

Embora o juiz tenha sido exortado pelo CNJ a ser consequencialista, examinar com prudência quais serão as consequências de sua decisão no mundo real e não na ficção jurídica, isso em regra ainda não se faz. Toda política pública de saúde se vê inviabilizada porque aqueles que têm acesso ao Judiciário raparam o cofre e não deixaram recursos financeiros para a legião dos desassistidos.

Em recente reunião, à qual estiveram presentes especialistas de várias áreas, ouvi uma observação interessante: a judicialização da saúde é outro exemplo da falta de solidariedade que acometeu a população brasileira. Cada um só pensa em si e não tem o menor interesse em saber se o atendimento de sua demanda prejudicará o próximo. Às vezes, muito mais necessitado do que o demandante, que teve o privilégio de acessar o Judiciário, sempre pronto a examinar o caso concreto, o direito daquele que ingressou com a ação e desprovido de condições de contextualizá-lo numa Nação em que a exuberância de direitos só encontra paralelo na fragmentação dos valores mais essenciais a um convívio verdadeiramente fraterno.

*José Renato Nalini é presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo

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