O alarme de Luiz Inácio

GAUDÊNCIO TORQUATO


A lógica na esfera política brasileira se alimenta de uma equação: a conquista do poder pelo poder. O verniz ideológico nos vãos de nossa democracia representativa se desmanchou na poeira do tempo. Se alguém ainda conservava dúvida sobre a existência de DNA doutrinário no sangue de algum dos nossos entes partidários, por exemplo, o PT, que sempre ergueu a bandeira do socialismo, acaba de desfazê-la ao ler as últimas confissões do comandante maior de suas tropas, o ex-presidente Luiz Inácio: os petistas só querem saber de cargos, o PT perdeu sua utopia, está no volume morto, bem como o governo Dilma e ele mesmo. O que isso quer significar?
É bastante conhecida a verve de Lula como palanqueiro. Nele, os antagonismos se irmanam, a ponto de confundirmos o verbo a favor com o verbo contrário, ponto e contraponto, defesa e ataque. Não é de admirar, portanto, que as últimas expressões de Lula sobre o PT seus companheiros mais pareceram peroração contundente de líder oposicionista, engajado na guerra para despejar mais lama sobre a imagem combalida do partido. Luiz Inácio, porém, sabe medir as coisas. A palavra amarga que tem usado é, antes de tudo, um puxão de orelhas nas lideranças e comandos que disputam fatias de poder no governo, desde que o petismo ganhou o primeiro mandato em 2002. Nos últimos anos, o partido viu acirradas as disputas entre alas e grupos, cujos horizontes programáticos foram trocados por benesses e mandos na máquina da administração. Com exceção de uma ou outra ala, de índole mais radical, todas as outras foram atraídas pelo gozo do poder.
O desabafo de Lula se direciona também às bases. O ânimo da militância petista perde ímpeto sob o tiroteio que atinge o partido desde o mensalão, quando se denunciou a "cooptação desonesta" de parlamentares em troca de apoio ao governo. Parte das milícias petistas tem resistido aos ataques dos exércitos dispersos da oposição, mas tem sido visível o amortecimento de uma base partidária que recebeu, ao longo das três décadas de vida do PT, um caldo ideológico, algo como mistura de valores éticos e princípios morais, crença no socialismo, mudanças na política, defesa dos direitos humanos, reforma política etc. A atração fatal pelo refúgio nas asas do Estado acabou rasgando o manto diáfano que o PT desfraldava como exclusividade sua. O longo duto que conecta o mensalão ao petrolão – Operação Lava Jato – acaba engolfando todo o petismo, a ponto de merecer de seu inspirador e fundador principal, Luiz Inácio, o mais veemente apelo por uma "volta às origens". A guinada à esquerda que o ex-metalúrgico pretende liderar seria o contraponto à guinada conservadora que se instala no país. Ele sabe, porém, que, antes disso, precisa arrumar as parcerias. Correu à Brasília para tentar segurar as bases junto ao Governo, a partir do insatisfeito PMDB, que dita a agenda nacional.
Lula receia que uma frente de esquerda formada pela corrente Mensagem ao Partido, liderada por Tarso Genro, siglas mais à esquerda, como PSOL e uma ala dissidente do PSB, possa esmaecer seu perfil de líder maior. Essa movimentação está em curso e, a depender da evolução da economia e da política, nos próximos meses, poderá se fortalecer ou mesmo perder impulso. Ora, enxerga-se clara manobra do ex-governador gaúcho para arrefecer o poder do lulismo sobre as hostes petistas. Essa é outra abordagem que explica as metáforas do ex-metalúrgico.
Por último, a trombeta que Luiz Inácio começou a usar com intensidade, nas últimas semanas, funciona como um sistema de alarme ante um artefato poderoso que ameaça cair nos arredores de seu Instituto, digamos sua eventual retenção para efeito de depoimento, sob o holofote que o juiz Sérgio Moro tem usado e cujo simbolismo - "erga omnes" - quer demonstrar que a lei é para todos. O palavrório funcionaria, nesse caso, como convocação da militância, estratégia para juntar as partes quebradas dos desvãos petistas e injetar sangue nas veias das galeras que ainda têm disposição de ocupar as ruas. O fato é que, a cada semana, os dutos da Petrobras chegam perto dos comandos do PT. Lula parece perdido, sem saber ainda o rumo a tomar. A presidente passa a ser alvo do verbo ácido da mídia, com sua homenagem à mandioca e a estupenda criação das "mulheres sapiens".
O lulopetismo passa por sua maior prova depois de três décadas. Poderá até não morrer, mas está na UTI. Sua maior expressão vai para o canto do ringue, tentando se desvencilhar de um adversário portentoso, treinado nas artes, ou melhor, nas letras jurídicas, o juiz do Paraná. Qual o remédio que poderá salvá-lo? A fórmula medicinal da bula da economia, chamada BO+BA+CO+CA= Bolso, Barriga, Coração, Cabeça. Bolso satisfeito, Barriga cheia, Coração emocionado, Cabeça agradecida. Nesse caso, a médica será sua pupila, dra. Dilma Rousseff. Mas a recuperação não será este ano. Teremos um segundo semestre pior que o primeiro. E, por enquanto, não se enxerga luz no fim do túnel.PS: Nessa sexta, Lula virou a página do alarme e passou a defender Dilma, ao dizer que a crise política não é da responsabilidade dela. Garantiu que ela vai arrumar o Brasil. Quem ainda acredita nisso?

NOTAS
NUVENS NEGRAS À VISTA
O segundo semestre será pior que o primeiro. O cenário continua a mostrar revisão para baixo do PIB tanto este ano como no próximo. A inflação poderá chegar aos 9%. Significa aperto forte nas camadas mais baixas da pirâmide e refluxo no bolso dos consumidores de classes médias. A classe C, média emergente, sofrerá bastante. As nuvens negras abarcam todos os quatro cinturões do governo: político, econômico, social e administrativo.

AS RUAS
As ruas voltarão a ser ocupadas pelos movimentos sociais. O Congresso será cobrado por aquilo que ainda não fez: a reforma política. A guinada conservadora, que tomou conta de pautas e debates, terá um forte contraponto por parte das entidades sociais. A carestia jogará também desempregados e os de bolso vazio nas ruas.

ESTRATÉGIAS DO LÍDER
Dois casos clássicos demonstram a capacidade estratégica de um líder. O primeiro envolve Alexandre Magno. Quem conseguisse desatar o nó que unia o jugo à lança do carro de Górdio, rei da Frígia, dominaria a Ásia. Muitos tentaram. Foram a Alexandre. Ele tinha duas opções: desatar o nó ou cortá-lo com a espada. Optou pela via mais rápida e certeira com um golpe forte. Sabia que perderia tempo tentando desatá-lo. O segundo caso é o ovo de Colombo . Levaram um ovo para o almirante e pediram que o equilibrasse. Com um pouco de força, Colombo colocou o ovo em posição vertical sobre a mesa.

Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato


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