Cidade: .guardiã da natureza, por José Renato Nalini


O Município brasileiro foi erigido à condição de entidade da Federação. O constituinte de 1988 contemplou a forma federativa da República mediante a integração da União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios. Isso representou verdadeira "promoção" da cidade, que tem de ter voz ativa na condução dos rumos nacionais.
Nada obstante, visão arcaica e limitada tem privado o município de participar, efetivamente, da forma federativa de governo. Assim é que, por uma anomalia patológica, a cidade é inibida de cuidar de si mesma e de sua população, pois a iniciativa legislativa é toda usurpada pelo Executivo. Milhares de ações diretas de inconstitucionalidade de normas municipais são julgadas procedentes por "vício de iniciativa". Ou seja: o Parlamento, que é a função estatal encarregada de normatizar, perdeu sua titularidade para o Governo.
Todavia, ainda quando é o Prefeito que tem a iniciativa, costuma-se vedar que o Município cuide da qualidade de vida e do bem estar de seus cidadãos. Isso ocorre quando se declara inconstitucional norma tendente a proteger o meio ambiente. Não é preciso muito esforço para concluir que a gravíssima crise hídrica decorre também de maus tratos infligidos à natureza. Se os caudalosos rios que cortam o Brasil fossem protegidos e não poluídos, não faltaria água. Se os córregos que foram canalizados e sepultados para dar lugar ao asfalto estivessem como em sua origem, não haveria a carência de vida que hoje ameaça a todos.
Pessoalmente lutei durante bom período, junto ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça, para reconhecer a plena e integral competência das cidades para legislarem sobre meio ambiente. Não é novidade em nosso sistema. As leis urbanísticas, por exemplo, podem ser produzidas pelo município, sempre que mais protetivas do que as leis federais e estaduais. Mas em relação ao ambiente, o "desenvolvimentismo" sempre falou mais alto. Daí a lamentável declaração de inconstitucionalidade de leis que proibiam queimadas em municípios cuja população sofria e continua a sofrer por esse verdadeiro crime ecológico.
Finalmente, surge uma luz no fim do túnel. O Ministro Celso de Mello, no RE 673.681-SP, em 4.12.2014, reconheceu: "Tenho por inquestionável, por isso mesmo, que assiste ao Município competência constitucional para formular regras e legislar sobre proteção e defesa do meio ambiente, que representa encargo irrenunciável que incide sobre todos e cada um dos entes que integram o Estado Federal brasileiro. Todos sabemos que os preceitos inscritos no art.225 da Carta Política traduzem, na concreção de seu alcance, a consagração constitucional em nosso sistema de direito positivo, de uma das mais expressivas prerrogativas asseguradas às formações sociais contemporâneas. (...)São todos esses motivos que têm levado o Supremo Tribunal Federal a consagrar, em seu magistério jurisprudencial, o reconhecimento do direito de todos à integridade do meio ambiente e a competência de todos os entes políticos que compõem a estrutura institucional da Federação em nosso País, com particular destaque para os Municípios, em face do que prescreve, quanto a eles, a própria Constituição da Repúblicas (art. 30, incisos I, II e VII, c.c. o art.23, incisos II e VI)".
A voz abalizada do respeitável e erudito Decano da Suprema Corte já se fez ouvir no Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo e ressoou no voto do Desembargador Arantes Theodoro, no seu voto 25.913, proferido em recente julgamento em embargos de declaração. Aguarda-se prevaleça a orientação, para que a cidade possa continuar a zelar pelo futuro de suas gerações e não ceder à imposição quanta vez irracional e imediatista de quem só enxerga o lucro e não mostra responsabilidade quanto a danos presentes ou futuros e continua a dilapidar um bem da vida insubstituível. Nenhum homem criou a natureza. Mas ele sabe destruí-la e desrespeitá-la com um furor que resulta nos flagelos já experimentados. E que vão se tornar cada vez mais severos, se a humanidade continuar a mostrar sua irracionalidade e falta de juízo. *José Renato Nalini é presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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