Desordem oficial

Reginaldo Villazón
As lutas sociais acontecem em todas as partes do planeta. Elas fazem parte da história das sociedades humanas. Muitas delas se estendem com ódio e violência por muito tempo e deixam mártires pelo caminho. Porém, tendem a alcançar soluções consensuais definitivas, que fazem desaparecer as disputas e os rancores, e estabelecer um ambiente favorável ao progresso geral.
As rixas pela posse da terra – na cidade e no campo – são lutas sociais muito presentes. São lutas que não vão desaparecer de modo natural, pelo esgotamento das causas, porque se referem à necessidade de espaço para a sobrevivência das pessoas. Na cidade, todos precisam de um espaço para, no mínimo, erguer uma casa humilde. No campo, a terra é um fator de produção essencial para a produção agropecuária.
As pessoas costumam discutir e opinar, sobre estas lutas, de forma simples, como se elas fossem apenas jogos de interesses, envolvendo inocentes versus culpados, mocinhos versus bandidos. Assim, na cidade os Sem Teto conflitariam com os Proprietários Urbanos, no campo os Sem Terra conflitariam com os Proprietários Rurais. Mas essa conversa esconde verdades e não contribui para entendimentos.
Na cidade, cabe ao poder público fiscalizar e exigir o cumprimento das normas legais que regulam a posse e o uso do solo. A omissão permite que vários personagens de boa e de má fé – proprietários, especuladores, construtores, corretores, compradores, oportunistas – se embaracem e produzam situações muitas vezes caóticas, que nem a Justiça consegue resolver depois de análises e pareceres.
No campo, a luta é mais antiga e muito cruel. A estrutura fundiária típica (a maior parte da terra agricultável concentrada nas mãos de uma minoria) esteve presente nos países do mundo antigo e da época medieval, e está presente na América Latina. A história registra muitos confrontos armados e muitas mortes.
No Brasil, há conflitos por terra agricultável em todas as regiões, tanto por falta de uma reforma agrária (sempre prometida, nunca realizada) como por irregularidades na posse e no uso da terra. Nestes conflitos, estão envolvidos fazendeiros, sitiantes, trabalhadores, sindicalistas, indígenas, posseiros, grileiros, cartorários, políticos, madeireiros, ambientalistas, empresas, órgãos do governo. Mortes? Acontecem todos os anos.
Nos últimos dias, noticiários informam que em Mato Grosso do Sul, na região chamada Terra Indígena Buriti, índios Terena que lutam pela reconquista de suas terras invadiram grandes fazendas. Numa operação de desocupação, determinada pela justiça, a polícia agiu com violência: prendeu, feriu e matou. Mas os índios não se intimidaram. O conflito se alastrou, outro índio foi baleado e hospitalizado.
O antropólogo Levi Marques Pereira sabe bem o assunto. Em1926, o governo federal demarcou na região uma reserva de 2.090 hectares para os índios Terena. E vendeu a maior porção das terras dos índios para fazendeiros. Os índios nunca se conformaram. Em 2001, o governo aprovou um relatório sobre a Terra Indígena Buriti, elaborado pela Funai (Fundação Nacional do Índio). Em 2010, com base no relatório, o Ministério da Justiça reconheceu oficialmente que 17.200 hectares pertencem aos índios Terena.
Em resumo. O governo federal tomou grande extensão de terras dos índios e as vendeu aos fazendeiros. Sob pressão, mais tarde reconheceu o erro. Mas não tomou providências, não demarcou terras, não indenizou os fazendeiros, não evitou conflitos. Desta vez, ficou muito claro para a sociedade quem é o provocador da desordem.

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