Coisas que acontecem

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Marta Sousa Costa
Viagem à vista, sol e mar na programação, previsão de alguns dias longe de casa; é mais que hora de preparar a bagagem, pois o tempo se tornou escasso, pela indecisão entre ir ou desistir. Decisão tomada, sobra um dia para pensar em todos os detalhes essenciais ao sucesso da temporada.
Começo pela mala, roupas e objetos pessoais, como sempre foi hábito meu? Mal acredito, quando a primeira preocupação é a caixa de remédios, que vai mudando de tamanho, conforme lembro esse ou aquele medicamento obrigatório. Começo com uma pequena bolsa, que há algum tempo seria enorme para quem não precisava nem aspirina. Tempo em que não conhecia sequer a sensação de dor de cabeça, o que não comentava, para não parecer exagerada ou mentirosa. "Irritantemente saudável", falava o marido, pedindo outra Neosaldina.
Mas, de repente, a situação mudou e, aos poucos, precisei de um remédio e outro, até chegar a este ponto de levar duas caixas grandes repletas de medicamentos, como prioridade na bagagem. Surreal, pareceu-me, mas fazer o quê? Imagine se falta um remédio, eu em outro país, no caso o Uruguai, onde não se encontra muitos remédios comuns aqui, desconhecidos lá. Assim, melhor não complicar e fazer a lição direitinho, torcendo para que tanto trabalho tenha bons frutos.
Tudo isso em consequência da última quimioterapia para as metástases no pulmão, que foi roubando as forças e obrigando o médico a aumentar a medicação, conforme novos sintomas desagradáveis surgiam. Com tantos remédios a serem ingeridos, em horas diferenciadas, a minha cabeça, que já não estava boa, quase entrou em parafuso, o que só não aconteceu pela ideia genial do marido de preparar uma planilha, que passei a seguir religiosamente.
O pior, contudo, nesta situação toda, foi que a cabeça esvaziou de ideias, restringiu a atuação à organização da medicação e a administração da casa, o que mostra como pode ser forte a síndrome de dona de casa. Por isso parei de escrever e publicar as crônicas semanais. Mas o bom foi que os leitores e editores começaram a cobrar, sem entender o que ocorria. E ser cobrada é bom, porque obriga a um esforço para corresponder.
E agora, entre uma quimioterapia e outra, quase volto a ser eu: pelo menos, voltei a pensar, o que é maravilhoso, sabe quem passou por essa situação. Mas o importante é aceitar as limitações que a vida nos impõe, mais cedo ou mais tarde; obedecer ao ritmo que o corpo precisa, sem aborrecimento ou revolta, por compreender que cada um tem a sua carga e é só olhar pros lados para reconhecer outras quase impossíveis de carregar e que, no entanto, os responsáveis levam com serenidade, acostumados que estão ao seu peso.
Mas, qualquer carga se torna mais leve, quando alternada com momentos de lazer, aproveitamento de todas as oportunidades de risos e conversa descontraída, entre pessoas que nos transmitem força e bons fluidos, com seu bem-querer. E assim, como "não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe" a gente vai levando a vida, sem se preocupar mais que o necessário, na esperança de que o novo dia traga a renovação das forças ou pelo menos devolva a capacidade de pensar, se não for pedir demais.
Ah, só pra terminar: a viagem aconteceu e foi boa. Só que, para não fugir à regra, tão empenhada fiquei em não esquecer nenhum remédio, que tive a capacidade de ir para a praia e esquecer o maiô. Coisas que acontecem.

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