Gracias a la vida

Marta Sousa Costa
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"A que vamos brindar?" – pergunta o amigo, quando unimos os copos, para o brinde tradicional. Após tantos brindes, erguidos ao longo da vida entre amigos de tempos que já não se conta, falta originalidade.
"A nós", responde alguém, e isso já diria tudo, mas o primeiro decreta: "À liberdade" – e o inusitado brinde, a esta altura da vida de cada um, une copos e pensamentos, no desejo de que se possa construí-la.
Estamos no Bar Liberdade, em Pelotas, reduto de choro, samba e seresta, que nesta noite recebe o grupo Camerata Novitango, para apresentação de tangos, valsas e milongas portenhas.
A música tem a capacidade de transportar para além do cotidiano, com suas dificuldades e emergências. Os arranjos do multi-instrumentista Possidônio Tavares ao bandoneon, com Laira Campos ao piano e Renan Leme ao violino, junto à interpretação da cantora Ângela Pachon, proporcionam momentos de encantamento muito além da imaginação. Abrem as portas da alma, carente de paz. O silencio é total, atentos os amantes da música à voz interior, que traz lembranças adormecidas.
Aprendi a dançar (mais ou menos) com meu pai, ao som de tangos, transmitidos pela rádio do Uruguai, a única que se alcançava, no interior de Piratini. Amante dos tangos, que decerto lhe proporcionavam lembranças de noitadas e companheirismo da juventude passada no país vizinho, costumava cantá-los, com voz emocionada e forte. Dessa forma, inúmeros tangos passaram a fazer parte também da nossa história, trazendo muitas recordações alegres e algumas tristes.
Ao final de sua vida – após a morte de mamãe, que lhe pregou a peça de morrer primeiro, sendo onze anos mais moça – ele às vezes umedecia os olhos, ouvindo os tangos que não se cansava de pedir para tocar, como "Cuesta Abajo" e outros, que ficaram gravados na nossa memória. Pena que não tivemos a sabedoria de avivar suas lembranças, pois ficou repetindo os mesmos "causos", embora muitas histórias interessantes ele devesse ter para contar.
Mas, como estamos próximos ao Natal e ao final do ano, o grupo Camerata Novitango decide que é hora de agradecer e nos presenteia com "Gracias a la vida", de Mercedes Sosa, para encerrar com chave de ouro esta noite especial.
"Gracias a la vida que me ha dado tanto", canta em espanhol Angela Pachon. E cada um, imagino, faz um retrocesso do ano que se apressa para acabar. Penso nele, o ano que finda, como velho cansado de nunca agradar. Tem razão, o ano velho, em reclamar da ingratidão e do desejo de novidade da gente em geral. Estamos sempre na expectativa de um grande acontecimento, um momento especial, uma virada na situação. E, enquanto nos projetamos para o futuro, o perigo é deixar de viver o presente, com as oportunidades e momentos especiais que se perdem, se não soubermos enxergá-los.
Assim, "graças à vida que me deu tanto": graças pelas coisas boas e pelas ruins, se nos fortaleceram; graças pelo amor, pela amizade, por cada minuto vivido intensamente. Graças pelo abraço apertado, pelo olho no olho, pelo chão firme sob os pés, pela confiança construída.
Graças pela liberdade de cada um buscar o seu caminho.

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